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16/04/2025

Artigo: Marias e Marianas de ontem e de hoje

Por Maria Elizabeth Rocha e Amini Haddad,

Desde o dia 28 de março, ouvimos nos noticiários sobre diversas absolvições relacionadas às agressões às vítimas de violência sexual, reavivadas pela condição de uma ocorrência na Espanha. Os manifestos nos levam à consideração do quanto o feminino se vê desqualificado, independentemente de onde se encontra.

E lá estão elas: vítimas. Há um espelho a nos mostrar algo que não gostaríamos de ver. Ninguém se dá conta das condições aterrorizantes: entre o fato e o sentimento do dever de denunciar, de todos os percalços vivenciados na psique das vítimas até conseguirem falar sobre o que sentem, o que ocorreu. Expor condições que externam dor, revolta, sua nudez imposta, seu esquecimento como pessoa e sua submissão às condições vexatórias, humilhantes, de objeto, de uso e descarte.

Os olhos aflitos das vítimas estão diante de nós. Entre o falar e o calar-se. Entre a dor do revelar e a dor de se esquecer. Percebemos a sua imagem: a vergonha diante de seus familiares, amigos e colegas de trabalho.

Sim. Está evidente a sua angústia pelas condições de uma realidade inescrupulosa que vulnera a própria identidade do feminino: uma mulher alijada e entorpecida pelas imposições reiteradas de condicionantes patriarcais, misóginas e hierarquizantes. Ao que se vê, a humanidade ainda não alcançou o básico da compreensão da igual dignidade entre o feminino e o masculino.

Os casos de violência contra meninas e mulheres, expostos em todos os noticiários do mundo, apresentam detalhes que nos confrontam. Percebe-se que ainda estamos alheios aos deveres cívicos que nos são exigidos na convivência humana, na dimensão do respeito: condutas e responsabilidades.

Vivemos na era das tecnologias, de incríveis descobertas, do desenvolvimento de instrumentais que nos aproximam de informações de qualquer espaço do mundo. O globo se tornou acessível na palma da mão. Contudo, apesar de toda a construção havida e de tudo que se fez pelas mãos humanas, somos ainda incapazes de ver.

O termo humanidade carrega um valor em si mesmo. Ao tempo em que unifica a pluralidade, a multiplicidade que nos habilita a ver mais, aprender mais, sermos mais: uma pessoa com a outra, uma pessoa para a outra e cada pessoa consigo mesma (consciência).

Não se trata de uma interlocução constitucionalista ou jungida da autoridade de um espaço funcional que ocupamos como professoras universitárias. E, neste tempo, não nos expressamos como magistradas.

A nossa voz vem da percepção de uma humanidade que não aceita o silêncio torpe que esvazia a alma.

Sim. Preocupam-nos as vítimas em todos os espaços do mundo, as mazelas e os sofrimentos em suas mentes.

Não se trata de uma crítica a um tribunal especificamente, onde quer que ele se encontre. Esperamos que a justiça seja feita em todos os âmbitos. Inclusive nas Cortes Superiores e Supremas ou nos Tribunais Internacionais.

Trata-se de uma constatação. Há muito para se caminhar diante de fatos aterrorizantes.

O letramento antidiscriminatório em todas as escalas e níveis educacionais da vida, do saber e das vivências relacionais (ambientes de trabalho, igrejas, escolas, universidades, espaços coletivos) é uma exigência que não somente decorre de tratados internacionais, convenções, garantias de equidade ou por uma carta política.

Temos um compromisso com a humanidade, a existência que acresce dignidade em si, por si e para o coletivo: pertencemos a essa multiplicidade que nos identifica como seres que deveriam ser dotados de consciência e de um dever.

É imprescindível que todas as instituições mantenham um espaço dialogado, voltado ao compromisso essencial com o valor da equidade.

Esses precedentes reais, noticiados com veemência pelas mídias, oficiais ou não, orientam cada um e cada uma de nós.

Fatos aterrorizantes nos colocaram e colocam diante de Marias (motivação da Lei 11.340/06) e Marianas (motivação da Lei 14.245/21) por todo o mundo, em suas diferentes nuances culturais e cenários continentais.

Isso tudo impele à consciência. Somos mulheres. Somos humanas. Somos parte desta multiplicidade. Não acrescemos esta contribuição como enfrentamento judicial.

Falamos com a autoridade da nossa condição humana, dos espaços sociais da nossa missão.

Reiteramos. Preocupamo-nos com as vítimas (mulheres e meninas) por todo este vasto mundo, diante de uma cultura contaminada por condições excludentes e costumes hierarquizantes entre homens e mulheres.

O desequilíbrio tem um preço. E não mais é possível mantê-lo invisível.

A injustiça traz muito aos nossos olhos. Esse dissabor não apenas se afigura para as vítimas. Uma cultura que desumaniza contamina a própria existência humana.

Seria isso cultura? Ou apenas estamos diante de um poder acrescido pela força impositiva de um costume atroz?

Conclamamos os coletivos nessa ação de consciência e dever inerente. Que sejamos mulheres e homens comprometidos com a equidade.

Eis um tempo de mudança.

 

Maria Elizabeth Rocha é ministra-presidente do Superior Tribunal Militar

Amini Haddad é juíza-auxiliar da Presidência do Superior Tribunal Militar 

Artigo publicado originalmente no Jornal o Estado de São Paulo (16/04/2025)