Leia abaixo a íntegra da matéria publicada pelo Jornal A Tarde, de Salvador (BA), no dia 27 de abril de 2023:
Nos últimos anos, a presença de militares nos espaços de poder tem gerado confusões acerca das atribuições das Forças Armadas. O exemplo mais recente dessa confusão são os atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro deste ano, quando as sedes dos três poderes foram invadidas e depredadas, contando com a participação, conivência ou omissão de representantes dessas forças.
No momento em que se apura as responsabilidades por esses atos, muitas pessoas se perguntam, afinal, a quem cabe apurar, acusar e punir, se for o caso, militares que tenham extrapolado suas competências?
Antes de responder a essa pergunta é preciso esclarecer certas informações que caíram no senso comum e criaram a ideia de que não há punição para fardados ou que a justiça militar é mais branda que a chamada justiça comum.
Suely Pereira Ferreira é juíza federal militar e desde 2015 atua na auditoria da 6ª Circunscrição Judiciária Militar, que abrange Bahia e Sergipe. Servidora concursada, ingressou na Justiça Militar da União em 1976, em São Paulo, tornou-se defensora em 1989, atuando em Belém (PA), até chegar a magistrada em 1997, inicialmente na Circunscrição de Campo Grande (MS), até chegar a Salvador.
Ela explica que a justiça militar integra o rol de tribunais federais especializados, assim como a justiça eleitoral e trabalhista e, portanto, não se confunde com os Tribunais Regionais Federais (TRF´s), que integram a estrutura da justiça comum, bem como os tribunais estaduais e suas instâncias superiores.
Na justiça militar existem apenas duas instâncias. A primeira, composta por 19 auditorias espalhadas em 12 circunscrições judiciárias, e a segunda, o Superior Tribunal Militar, composto por 15 ministros, sendo 5 togados e 10 militares, além de um ministro corregedor.
A magistrada explica que as atribuições da justiça militar estão definidas na Constituição Federal e são restritas a militares da ativa, da reserva ou reformados, além de civis que cometam crimes contra militares ou em dependências sob administração militar.
Ela também esclarece uma dúvida comum. Policiais e bombeiros militares são julgados pelas suas respectivas corporações em cada estado. Por ser um tribunal especializado e com atuação muito restrita, os processos costumam ser muito mais céleres e como as possibilidades de recurso também são reduzidas, o tempo de tramitação dos processos é mais curto.
"Não somos justiça corporativista, não passamos a mão na cabeça de ninguém", diz a juíza Suely. Ela explica que, em caso de crimes cometidos por militares o julgamento é realizado por um colegiado. Além de um juiz togado, quatro representantes da força à qual o réu está vinculado (Exército, Marinha ou Aeronáutica) são convocados para compor o corpo de jurados. Em caso de civis ou militares reformados e da reserva, a decisão é monocrática. A magistrada processa e define a sentença de forma individual.
Atualmente, Suely está comandando o julgamento de um ex-militar de 23 anos, que invadiu o comando da 6ª Região Militar, na Mouraria e matou o subtenente Carlos André de Souza Paschoal, de 43 anos.
"Ele foi licenciado, está na condição de civil. Matou um militar num local sujeito à administração militar, então é da nossa competência e estou processando e julgando monocraticamente", diz a juíza. O caso aconteceu em setembro do ano passado e já está prestes a ser finalizado.
D. João VI
A Justiça Militar é a mais antiga do Brasil. Chegou com D. João VI e a coroa portuguesa em 1808. "(D. João) trouxe a força armada com ele e tinha um corpo dentro da força que julgava militares quando praticavam crimes", explica a magistrada.
O Conselho Supremo Militar de Justiça, criado em 1º de abril de 1808, completou esse ano 215 anos, e a primeira corte militar, o Supremo Tribunal Militar, inaugurado em 18/07/1893, está prestes a completar 130 anos.
E, hoje, os desafios da corte não são muito distintos dos que enfrenta a justiça comum. Além dos delitos corriqueiros, como crimes contra o patrimônio, contra a administração militar, estelionato, furto, peculato, crimes contra a vida e lesão corporal, os quartéis hoje convivem com a principal causa de prisão e processos judiciais que sobrecarregam os tribunais civis.
"Tem a questão da droga no quartel, isso também tem grande número", revela a juíza, que tem percebido uma tendência, por parte de defensores, de escapar do julgamento militar e levar os casos para a justiça comum, embora sem muito sucesso.
Segundo Suely, muitos advogados buscam enquadrar os réus na lei 11.343, que prevê advertência e conversão de pena em prestação de serviços comunitários, em caso do acusado ser considerado usuário.
Ela lembra que a lei não é clara quanto à quantidade de droga que pode ser considerada para consumo e defende a aplicação do artigo 290 do código penal militar, que estabelece pena mínima de um ano, podendo chegar a cinco, em casos envolvendo posse de entorpecentes.
"O militar das forças armadas deve ter saúde íntegra. Ele é militar das Forças armadas 24 horas por dia, 365 dias no ano", justifica a dra. Suely. Como em qualquer condenação imposta pelo tribunal militar, os apenados da ativa cumprem as sentenças nos quartéis das forças a que pertencem ou em presídios militares, quando houver.
Emprego na fronteira
Além da droga, outro crime comum e que vem crescendo nos último anos é a deserção. Segundo a magistrada, é comum os jovens abandonarem o serviço militar obrigatório, principalmente nas fronteiras.
"Quando eu trabalhei em Campo Grande, era grande a deserção. Na fronteira seca com o Paraguai é comum as crianças terem dois registros. Então os jovens se alistam em busca de emprego e quando percebem a realidade da vida no quartel, acabam desertando", diz a juíza, que também relata um aumento no abandono dos quartéis na capital federal. "Brasília está tendo muita deserção."
Atos antidemocráticos
Para você que chegou até aqui e ainda espera a resposta para a pergunta do segundo parágrafo, aqui vai a resposta. Desde 2017 uma mudança na legislação ampliou as competências da justiça militar, incorporando as ações relacionadas aos decretos de garantia da lei e da ordem (GLO).
Uma forma de amparar os militares que eventualmente tenham cometido excessos durante operações como a intervenção militar instalada naquele ano na segurança pública do Rio de Janeiro.
Mas e quanto às responsabilidades dos militares flagrados nos atos golpistas de 8 de janeiro, incluindo os do Gabinete de Segurança Institucional (GSI)? Para Suely, a reposta para essa pergunta passa por outros questionamentos.
"Qual a situação do militar? Ele estava de serviço?" As respostas a essas perguntas definem o encaminhamento dos processos, mas, via de regra, Suely acredita que os casos envolvendo as depredações em Brasília ficarão a cargo da justiça comum, uma vez que nem o GSI nem as sedes dos três poderes se encontram sob administração militar.
Fonte: Jornal A Tarde, de Salvador (BA)