O Superior Tribunal Militar (STM) mudou entendimento da primeira instância da Justiça Militar da União, em Brasília, e condenou um suboficial da Marinha a dois anos de detenção, pelo incêndio ocorrido na base brasileira na Antártica.

Ele foi denunciado pelo de crime “causar incêndio em lugar sujeito à administração militar, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”, previsto do artigo 268, § 2º (incêndio culposo), do Código Penal Militar.

A base brasileira Comandante Ferraz, na Antártida, que começou a operar em 1984, pegou fogo em 25 de fevereiro de 2012. Cerca de 70% das instalações foram destruídas e dois militares morreram. Na oportunidade, o Brasil desenvolvia cerca vinte projetos de pesquisa científica, entre eles, de observação atmosférica, geologia, ciências biológicas, monitoramento ambiental de baleias e algas, monitoramento climático e o projeto criosfera, que se desenvolve no interior do continente. No dia do incêndio, a maioria das 60 pessoas que estavam na estação brasileira foi transferida até a base do Chile. Os prejuízos aos cofres públicos foram da ordem de R$ 24 milhões.

Segundo a denúncia do Ministério Público Militar, o sargento denunciado era responsável pela transferência de combustível na praça de máquinas na base brasileira e uma das atividades era transferência de óleo diesel de combustão imediata entre tanques que alimentavam os geradores da base. Na noite do acidente, ele deixou o posto, com a transferência em andamento, para participar da festa de despedida de uma pesquisadora.

O incêndio teria ocorrido porque a transferência de combustível não foi encerrada em tempo hábil, levando ao transbordamento dos tanques. O contato do óleo com o gerador quente foi a principal causa do incêndio.

De acordo com a promotoria, por volta das 23h30, na Estação Antártica Comandante Ferraz, o suboficial resolveu efetuar a transferência de óleo diesel para dois tanques de serviço com capacidade de cinco mil litros cada um, localizados na praça de máquinas. Logo após os procedimentos necessários para iniciar a transferência, que demandaria cerca de meia hora, teria voltado para a sala de estar da Base, onde estava ocorrendo a confraternização. Lá teria permanecido até cerca de 0h40, momento em que houve uma variação de energia e o acusado, alarmado, dirigiu-se à praça de máquinas deparando-se com um incêndio de grandes proporções. 

Julgamento de primeira instância

Um Inquérito Policia Militar foi aberto pela Marinha para apurar as responsabilidades. Posteriormente, o então sargento foi denunciado à Justiça Militar de Brasília, responsável por julgar crimes de militares brasileiros cometidos fora do país. No julgamento, ocorrido em 23 de fevereiro de 2014, o militar foi absolvido do crime.

Na oportunidade, em sustentação oral, a defesa pediu para que a ação penal fosse considerada improcedente, pois não haveria como comprovar que a conduta do militar fosse a causadora do incêndio. Contrariando o posicionamento do Ministério Público Militar, a advogada alegou que, de acordo com normas técnicas, a transferência não tinha uma data certa para acontecer e que não precisaria de autorização superior. Ao proferir o seu voto, o juiz-auditor afirmou que o laudo da Polícia Federal, que considerou o mais detalhado, não era conclusivo.

Segundo o magistrado, o descuido do militar e o consequente transbordamento do tanque é apenas uma entre outras hipóteses que teriam ocasionado o incêndio. Em razão da ocorrência da dúvida, o juiz decidiu absolver o réu, por não haver prova suficiente para a condenação. A decisão foi seguida por três dos outros quatro juízes militares do Conselho Permanente de Justiça.

Incêndio culposo

Não satisfeita com a decisão, a promotoria apelou junto ao Superior Tribunal Militar. Nesta quinta-feira (12), o Tribunal apreciou a matéria, num julgamento de quase duas horas. O relator do caso, ministro Luis Carlos Gomes Mattos, acompanhou a sentença de primeira instância e não fez qualquer mudança, mantendo a absolvição do acusado. 

Em voto divergente, no entanto, o ministro revisor, José Coêlho Ferreira, votou pela condenação do suboficial da Marinha. De acordo com o ministro, minutos antes do início do incêndio, foi o réu responsável pela transferência de combustível dos tanques de armazenamento para os tanques de serviço. 

O magistrado afirmou que o Laudo Pericial informou que o início do incêndio teria ocorrido entre 0h18 e 0h49, conforme fotos capturadas do módulo “meteoro”, cuja função era registrar dados meteorológicos, concluindo que a causa provável foi o transbordamento de combustível ocorrido nos tanques de serviços, que se incendiou ao encostar na rede de descarga de gases, que trabalha com temperaturas próximas a 500ºC e está localizada abaixo do piso principal da praça de máquinas, local do início do incêndio.

“No Parecer Técnico do Incêndio da Diretoria de Engenharia Naval da Marinha do Brasil, determinou-se o horário de início do incêndio fazendo conexão entre as fotografias do 'meteoro´, os relatos da falta de energia ocorrida na confraternização e as fotos dessa festa que estava sendo realizada na mesma noite do incêndio, concluindo como início do incêndio entre 0h30 e 0h40 do dia 25/2/2012”. 

O ministro também relembrou que, de acordo com relatos do próprio acusado e atos de testemunhas, o apelado teria voltado para a sala de estar da Base, onde estava ocorrendo a confraternização, tendo lá permanecido até cerca de 0h40, momento em que o suboficial dirigiu-se à praça de máquinas deparando-se com o incêndio.

“Feita a reconstrução dos fatos ocorridos na noite do incêndio, há que se verificar se a conduta do militar pode ser considerada negligente, ou seja, se deixou de observar o dever de cuidado necessário para a atividade de reabastecimento que lhe cabia, haja vista que o legislador tratou de incluir a figura dentre as possíveis no crime de incêndio. Logo, admite-se a forma culposa, atentando-se ao fato de que no direito penal existe o princípio da excepcionalidade do crime culposo, só podendo haver essa forma se prevista expressamente no tipo penal”, disse o ministro. 

Comprovação 

Para o revisor, ficou suficientemente demonstrado nos autos que o crime ocorreu em face do transbordamento de combustível dos tanques de serviço, conforme os Laudos Periciais realizados tanto pela Marinha do Brasil como pela Polícia Federal. Segundo o José Coêlho Ferreira, a Norma Padrão de Ação nº 04, cujo propósito é estabelecer instruções destinadas ao controle e armazenamento de combustíveis, lubrificantes e graxas (CLG) na Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), deixou de ser observada pelo apelado quando não acompanhou toda transferência de combustível.

“Vale destacar que o próprio acusado confessou ter conhecimento dessa regulamentação, mencionando, inclusive, que estava desatualizada, razão pela qual proferiu palestra sobre o assunto. Ora, penso que nem seria preciso uma instrução normativa para que se saiba que o operador da transferência precisa estar em prontidão e acompanhando toda transferência do combustível até que o tanque esteja cheio para estancar a passagem de combustível manualmente.”

O ministro foi incisivo em dizer que o nível de combustível teria que ser conferido visualmente e não havia um travamento automático para quando o tanque estivesse cheio, razão pela qual a ausência do local durante o abastecimento infringe frontalmente o dever de cuidado necessário para a atividade. Para ele, a conclusão é única quanto à causa, dinâmica e evolução do incêndio: transbordamento de combustível durante o reabastecimento dos tanques de serviço dos Grupos Geradores diesel. 

O ministro José Coelho afirmou que a própria sentença reconhece que o militar não poderia se ausentar da operação de transferência de combustível, porém conclui que não há provas de que o incêndio ocorreu porque o militar deixou de observar os deveres de cuidado e cautela necessários para um reabastecimento, uma vez que, ao periciar o local, o registro de entrada de diesel no tanque 1 “se encontrava praticamente fechado” e, por isso, não tem como precisar se realmente o acusado fechou as válvulas após o reabastecimento. 

O ministro revisor deu provimento ao apelo ministerial para, reformando a sentença absolutória, condenar o suboficial da Marinha do Brasil à pena de dois anos de detenção, com o benefício do sursis pelo prazo de dois anos, fixando o regime prisional inicialmente aberto para o cumprimento da pena. Por maioria, os demais ministros da Corte acataram o voto do ministro revisor.