Um esquema fraudulento para a concessão de reforma remunerada a militares culminou na condenação de cinco pessoas pelo crime de estelionato, art 251 do Código Penal Militar (CPM). Dois ex-soldados, dois médicos e um advogado estão entre os envolvidos e cumprirão penas que variam de dois a sete anos de reclusão.
A sentença foi proferida pela juíza federal substituta da Justiça Militar da União Natascha Maldonado Severo, da 1ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM), com sede em Porto Alegre (RS).
O esquema funcionou entre os anos de 2006 e 2016, sendo os acusados denunciados em 2017 e julgados em agosto de 2020.
No total, o Ministério Público Militar (MPM) denunciou oito pessoas. Três delas foram absolvidas pela magistrada em julgamento conduzido de forma monocrática. Os demais foram condenados por fazerem parte de um plano que consistia em: ajuizar ação perante a Justiça Federal postulando a reforma do militar em grau hierárquico superior, acrescida de auxílio invalidez.
No caso dos dois militares condenados, o desenrolar dos fatos era bastante similar, com exceção da doença apresentada, que variou entre problemas ortopédicos e distúrbio psiquiátrico. A partir dos primeiros sintomas, teriam início as constantes visitas a médicos, momento em que participavam os dois servidores da saúde também indiciados, responsáveis pela emissão dos laudos falsos.
O momento seguinte era capitaneado pelo advogado, responsável por ajuizar as ações com pedido de reforma por sintomas que tornavam os ex-soldados inaptos não só para o serviço militar, mas também para qualquer atividade laboral na vida civil.
No caso dos dois militares a reforma foi concedida, ocasionando custos para a Administração Militar por anos, até o oferecimento de denúncia pelo MPM, que descortinou o modo de operar do réu conhecedor de todos os procedimentos jurídicos necessários para conseguir a reforma.
“O advogado, conforme gravação feita por agentes, sugere simulação de problemas de saúde para embasar pedido de reforma, apresentando-se como especialista em reformar militares e chegando a explicar ao agente como ele deveria se portar para obter sucesso. Vale ressaltar ainda que a periculosidade do acusado deve ser levada em conta para a fixação da pena e decretação de prisão preventiva após a condenação em primeiro grau”, relatou o MPM.
O órgão acusador explicou ainda que foram apreendidos carimbos e receituários médicos no escritório do réu, havendo provas de que ele mesmo preenchia alguns dos atestados e receituários.
Em um dos casos, o ex-soldado dizia apresentar problemas ortopédicos, necessitando até mesmo de auxílio de terceiros para deslocamento e medicação contínua. No entanto, o que se verificou é que mesmo reformado por problema tão sério, o réu praticava jiu-jitsu, dançava e realizava várias atividades incompatíveis com a lesão apresentada por ele.
O segundo militar condenado alegava problema psiquiátrico, demonstrando nas perícias médicas que passou a sofrer pressões psicológicas devido a suas atividades militares, passando a se sentir perseguido, sofrer de insônia, perda de apetite, visões e alucinações.
Em um dos procedimentos médicos realizados, em outubro de 2016, o réu alegou não ter autonomia nem mesmo para realizar autocuidados básicos, como vestir-se e tomar banho, mostrando uma postura com rupturas da realidade, balançando-se e falando sozinho.
No entanto, de acordo com a denúncia oferecida pelo MPM, apenas doze dias antes da citada perícia, a autoridade policial realizou diligências de campo para observar o mesmo, que foi flagrado conduzindo veículo, que está registrado em seu nome, acompanhado de sua esposa e uma criança. Entre outras coisas, o réu abasteceu o carro, desembarcou em estabelecimento comercial com a criança, enquanto a esposa os aguardava no carro, fez compras, voltou ao veículo, aguardou a criança embarcar no banco de trás e saiu dirigindo novamente. Tudo foi registrado em imagens que acompanharam a informação policial.
“A comparação entre o comportamento de ex-soldado no dia da vigilância velada e da perícia deixa evidente a simulação perpetrada no dia da avaliação com a psiquiatra.
Como se observa, embora, de fato, tenham existido três internações psiquiátricas, elas não são capazes de afastar a evidente simulação de doença, comprovada pela comparação entre a conduta do paciente no dia em que sua rotina foi acompanhada discretamente pela autoridade policial e a conduta por ele adotada no dia da perícia no juízo cível. Na verdade, as internações mais parecem fazer parte do roteiro do advogado para a produção de prova necessária à obtenção da reforma indevida, conforme fartamente demonstrado pela investigação”, colocou a magistrada na sua sentença.
Natascha Maldonado continuou afirmando que não se pode esquecer que tal militar sempre foi saudável e apto ao serviço militar - conforme as atas de inspeção de saúde juntadas -, até se envolver em transgressões disciplinares e suspeita de crimes militares, momento em que passou a alegar os problemas psiquiátricos.
Após o que a juíza federal entendeu ser um esquema fraudulento, ela decidiu julgar parcialmente procedente a pretensão punitiva estatal e condenar os dois ex-soldados a penas que variaram entre dois anos e três anos de reclusão. Os médicos, responsáveis pelo fornecimento de laudos falsos, cumprirão pena de dois anos de reclusão. Por fim, a reprimenda mais grave foi aplicada ao advogado, considerado o responsável por articular as ações de todos. Ele foi condenado a sete anos e dois meses de reclusão.
Ação Penal Militar - Procedimento Ordinário nº 0000072-36.2016.7.03.0103