O maior desafio do juiz brasileiro nos julgamentos de processos relacionados a acidentes aéreos é saber identificar e usar dados fáticos e técnicos dos relatórios do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER). Esta foi a principal defesa feita pelo juiz Marcelo Honorato, em palestra no STM.
Relatórios de acidentes aéreos não podem servir de base para decisões judiciais, afirma especialista
Juiz federal substituto Marcelo Honorato Foto: Najara de Araújo
Palestrante deste segundo dia do curso sobre “O Papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo”, Marcelo Honorato fez questão de apresentar aos magistrados e especialistas em Direito que o principal objetivo do relatório do SIPAER não é encontrar culpados para os acidentes aéreos, mas recomendar normas de segurança e evitar novos acidentes. O juiz esclareceu que quando ocorre um acidente aéreo, o Centro de Prevenção e Investigação de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), órgão do Comando da Aeronáutica, nomeia uma comissão de investigação responsável por pesquisar, analisar e confrontar todos os dados disponíveis que venham a ser levantados ao longo do processo investigativo. Os aspectos revelantes são juntados em um “Relatório Final”, que representa o parecer oficial do Comando da Aeronáutica sobre o acidente e que servirá exclusivamente à tarefa de prevenir novas ocorrências.

No entanto, ocorre que muitas das vezes, por carência de informações e investigações técnicas sobre acidentes, os promotores ajuízam suas ações e os juízes tomam suas decisões baseados nestes relatórios, que são feitos fundamentados em hipóteses, suposições e probabilidades e sem o procedimento constitucional do contraditório e da ampla defesa.

Para o juiz federal, que também foi oficial piloto da Força Aérea, pelo próprio princípio fundamental da inafastabilidade judicial, os dados dos relatórios podem ser usados pelos magistrados, no entanto de forma acessória. “Ao analisar esses documentos, os juízes têm que se ater aos dados fáticos, como os de gravação e os laudos de engenharia, todos compatibilizados com outras investigações”, sugere o magistrado. Ele enfatiza também que as investigações conduzidas administrativamente pela Aeronáutica são feitas apenas com o intuito de se prevenir acidentes e não para fornecer dados para uma eventual ação criminal ou cível. “Há a um risco muito grande de julgamento quando se utiliza apenas dados exclusivos do relatório, porque se vai condenar pessoas que às vezes não têm relação direta com o acidente ou que foram mencionadas apenas por hipóteses”, previniu. O juiz diz que é de fundamental importância que abra uma investigação criminal específica para dar sustentação à ação criminal, sem usar os dados dos relatórios do SIPAER.

O especialista em Direito Aeronáutico afirmou também que o Estado tem que proteger o SIPAER, pois ele está diretamente ligado à segurança do vôo. “O sistema tem muitas ferramentas de prevenção e a colaboração maior que o Judiciário pode oferecer à segurança do voo é protegê-lo”. Ainda de acordo com Honorato, os operadores do sistema aéreo confiam em fornecer informações ao sistema de prevenção e de investigação. No entanto, ao se aperceber que suas informações podem ser utilizadas em um possível processo judicial, uma das ações de proteção desses fornecedores será a de omitir informações, até mesmo para não se prejudicar posteriormente. “Nas investigações aeronáuticas não há partes. O seu objetivo não é encontrar culpados, diferentemente da instrução criminal, que tem que fazer as suas próprias investigações”.
O juiz diz que os principais efeitos quando o Judiciário usa relatórios da Aeronáutica como base exclusiva do seus julgados são a quebra de confiança, o nexo de causalidade deduzido de recomendações e hipóteses e condenações sustentadas em provas penais produzidas sem o contraditório e a ampla defesa.

Participam do curso, que ocorre até a próxima sexta-feira (30), juízes federais, juízes-auditores da Justiça Militar da União, juízes estaduais, promotores, procuradores, operadores do direito ligados à área de aviação, como especialistas da Embraer, Infraero, Anac, além de militares e pilotos das três Forças Armadas. O principal objetivo do curso é apresentar o trabalho de prevenção feito pelo CENIPA, suas especificidades, suas características peculiares, como o uso de hipóteses e probabilidade nas investigações, assim com a sua respectiva incompatibilidade.

Segundo o juiz federal Marcelo Honorato, a investigação da Aeronáutica deve ser preservada pela Justiça para contribuir efetivamente para a prevenção de acidentes aeronáuticos.
Proteção da investigação da Aeronáutica traz benefícios para a sociedade, afirma juiz.
Durante o segundo dia de curso “O Papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo”, o juiz federal, e coordenador científico do curso, Marcelo Honorato, falou um pouco mais sobre os aspectos jurídicos e técnicos da investigação dos acidentes aeronáuticos. Segundo o magistrado, a Justiça deve agir de forma autônoma e ordenada com a Aeronáutica. Isso porque a utilização unicamente do relatório técnico militar dificulta a análise de culpa e dolo que não são objeto desta investigação, mas sim da investigação criminal.

De acordo com o palestrante, a investigação conduzida pela Aeronáutica avalia cada uma das falhas ocorridos na cadeia de eventos, provendo uma análise global do acidente aéreo. O objetivo desta investigação é emitir recomendações para o Brasil e o mundo que evitem novos acidentes. Em nenhum momento, há a preocupação em identificar criminalmente os responsáveis pelos acidentes.

O juiz federal explicou que, no acidente ocorrido com o voo 3054 da companhia TAM em 2007, a investigação do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer) resultou em uma determinação para que a fabricante Airbus criasse um alerta sonoro no sistema da aeronave quando apenas um dos manetes fosse colocado em posição de frenagem. Segundo o juiz federal, este aviso sonoro poderia ter auxiliado o piloto na hora do acidente. No entanto, a falta do alarme é uma das hipóteses trabalhadas pela Aeronáutica, não cabendo denunciar a Airbus pelo acidente.

O juiz Marcelo Honorato reforçou a necessidade de proteger a investigação realizada pela Aeronáutica, pois ela faz um estudo minucioso de todos os aspectos que poderiam ter resultado, direta ou indiretamente, em um acidente. O juiz voltou a destacar uma outra recomendação feita pela Aeronáutica como resultado da investigação do acidente da TAM. De acordo com Honorato, naquela época a equipe de prevenção de acidentes da companhia contava com pouco mais de 20 profissionais. Essa situação, apesar de ser legal, seria um fator que poderia, em tese, contribuir para acidentes aéreos.

O juiz federal também afirmou que o uso pela Justiça de declarações colhidas durante a investigação militar cria um clima de desconfiança nas pessoas envolvidas no sistema aeroportuário, o que acaba prejudicando as investigações que buscam prevenir outros acidentes. Ele revelou, por exemplo, que nas salas de pilotos de avião, há um formulário que pode ser preenchido pelo piloto quando ele identificar alguma condição que pode afetar a segurança de voo. Esse formulário é confidencial e, segundo dados revelados pelo juiz durante a palestra, em cada 300 indicadores apontados pelos pilotos, cerca de 30 incidentes e um acidente são prevenidos. “O Poder Judiciário deve preservar essa confidencialidade dos pilotos”, defende Honorato.

Gol 1907

No caso do acidente da companhia GOL em 2006, o juiz afirmou que o relatório do Sipaer foi bastante utilizado judicialmente para reforçar pontos levantados por peritos que falaram apenas durante o julgamento do processo e que não tinham o conhecimento técnico especializado necessário, o que contribuiu, por exemplo, para a absolvição dos pilotos do jato Legacy por nada terem feito durante a falha de comunicação com a torre de controle.

Já em relação à decisão da Justiça de condenar um dos controladores de voo, o juiz federal acredita que a Justiça Militar da União conduziu bem o processo, principalmente porque o inquérito policial foi conduzido por pessoas que entendiam bem o assunto e que não utilizaram o relatório do Sipaer.

As normas que restringem o direito de propriedade em zonas de segurança aeroportuárias e casos concretos da atuação da Justiça para garantir a segurança nessas áreas foram apresentadas por especialistas da Aeronáutica.
A relação entre o direito de propriedade e a proteção de zonas de segurança em aeroportos é discutida em palestras.
Construção de hospital ao lado da pista. Foto: Lucíola Villela
Para encerrar o segundo dia do curso “O papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo”, dois tenentes da Aeronáutica falaram sobre as consequências do uso inadequado do solo para a segurança de voo. O tenente Francisco Henrique Figueiredo Araújo, engenheiro do IV Comando Aéreo Regional (Comar), falou sobre as normas que definem restrições especiais para propriedades na zona de segurança aeroportuária.

Segundo o engenheiro, qualquer tipo de construção que possa contribuir para a falta de segurança em aeroportos deve ser submetida à avaliação da Aeronáutica que emite um parecer autorizando ou não a construção ou permanência da propriedade no local. O tenente Figueiredo explicou que é competência da administração pública decidir como será feito o uso do solo e que ela deve exigir sempre o parecer da Aeronáutica.

As normas legais determinam a competência do Comar para tecnicamente autorizar ou não o projeto. Qualquer interessado pode entrar com a solicitação no Comar que encaminha a demanda para diversos órgãos especialistas. Se esses pareceres concluírem pelo indeferimento do projeto, a recomendação deve ser seguida pelo Comar que a comunica oficialmente. Esta comunicação da decisão do órgão é feita por meio de ofício. E é este um dos aspectos em que a Justiça Militar da União deve atuar, pois já houve casos em que esse parecer da Aeronáutica foi falsificado para viabilizar a construção ou permanência do projeto.

O engenheiro também falou sobre o Plano Básico de Gerenciamento de Risco Aviário que define um raio de proteção de 20 km em todos os aeroportos. Este plano define critérios para a análise de focos de atração de aves, como lixões e esgoto sem tratamento, por exemplo. Todos os potenciais focos de atração também são analisados para a concessão da autorização da Aeronáutica.

O tenente Figueiredo finalizou a palestra com o recado de que implantar medidas de segurança podem gerar muitos custos, mas que o prejuízo no caso de um acidente é muito maior. “Além de todo o prejuízo que pode ser contabilizado, ainda há um custo muito alto na forma das pessoas que evitam viajar de avião ou das companhias aéreas que suspendem uma rota por falta de condições de navegação até o aeroporto”.

Casos concretos da atuação do Judiciário

Em seguida, o tenente e advogado Renato Bretas Ribeiro falou sobre algumas decisões recentes da Justiça que trataram de violações às normas de preservação da zona de segurança dos aeroportos. Na maioria dos casos, os responsáveis pelos obstáculos seguiram com os projetos sem submetê-los ao Comar. Segundo o especialista, os principais instrumentos legais que podem ser acionados nestes casos, são a ação civil pública que pode ser iniciada pelo Ministério Público, a ação popular ao alcance de todo cidadão e a ação de nunciação de obra nova de legitimidade da União, Distrito Federal, estados e municípios.

O militar citou alguns casos emblemáticos como a obra de construção do Hospital das Américas no Rio de Janeiro a menos de 1 quilometro da pista do aeroporto. Na decisão do Superior Tribunal de Justiça que suspendeu a obra, o relator citou o risco para o tráfego aéreo e a inoportunidade de se criar um hospital em local com alto nível de ruído. A construção havia sido iniciada sem a autorização da Aeronáutica, apenas com o alvará da prefeitura.

Já em Marabá, no Pará, o Ministério Público Federal denunciou um aterro sanitário e um matadouro que ficavam ao lado do aeroporto e atraíam dezenas de urubus. Por ordem da Justiça, o aterro foi transferido de local pelo município e o matadouro, que era propriedade particular, foi desativado.

Em São José dos Campos (SP), a cobertura de um prédio de luxo teve que ser demolida, pois estava a pouco menos de 4km da pista do aeroporto e a altura superava em quatro metros a permitida, o que prejudicava a navegação das aeronaves. Durante o processo na Justiça Federal, houve a suspeita de que o ofício do Comar apresentado pela construtora seria falso. Uma investigação foi aberta na Aeronáutica e a Justiça Militar da União concluiu em julgamento que realmente houve o crime de falsidade ideológica.

O caso de uma torre de telefonia em Petrolina (PE) também foi apresentado. A torre superava em mais de vinte metros a altura máxima permitida e tinha uma distância de apenas 2,5 km do aeroporto. Em audiência de conciliação na Justiça Federal, as empresas de telefonia concordaram em diminuir a altura da torre e regularizaram a situação no Comar.

 

O terceiro dia de curso foi marcado por atividades práticas como visita ao laboratório de destroços do CENIPA e ao laboratório de gravações de caixa-preta.
Magistrados têm jornada especial com especialistas da Aeronáutica
Os participantes do Curso “O Papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo” tiveram uma jornada muito especial nesta quarta-feira (28). Advogados, promotores e magistrados, dos vários ramos da justiça brasileira, conheceram na prática como funciona a vigilância aérea do país e as peculiaridades da prevenção e da investigação de acidentes aéreos.

A primeira parada foi no Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro (COMDABRA), órgão da Aeronáutica, que reúne militares das três Forças Armadas. Eles acompanharam a prática das duas principais unidades da Aeronáutica responsáveis pela vigilância do espaço aéreo brasileiro. Na palestra, o major-brigadeiro Marcelo Holanda, chefe do COMDABRA , informou que as ordens de interceptações de aeronaves suspeitas ou agressores no espaço aéreo brasileiro são de responsabilidade da unidade especial da Aeronáutica.

Ele também disse que as atividades de socorro aéreo, apuração de infração de tráfego e ainda o combate tráfico ilícito de entorpecente em aeronaves também são de responsabilidade do órgão. “Somo nós que cumprimos as ordens de abate de aeronaves determinadas pelo presidente da República”, afirmou. Ainda segundo ele, a única exceção na lei do abate fica por conta do tráfico ilícito de entorpecentes. “Neste caso, foi delegado ao Comandante da Aeronáutica dar a ordem para derrubar as aeronaves”, disse.

Após a visita ao COMDABRA, os participantes do curso foram ao Centro de Prevenção e de Investigação de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), órgão da Aeronáutica, também sediado em Brasília. Na unidade, os participantes assistiram a várias palestras com especialistas. Dentre elas, a palestra sobre risco aviário, o lançamento de um livro doutrinário sobre o Sistema de Prevenção e Investigação de Acidentes Aéreos e sobre gravações e degravações das caixas-pretas da aeronaves.

De acordo com o Coronel Flávio Antônio Coimbra, no Brasil jamais se registrou mortes em acidentes aéreos provenientes de colisão entre aviões e aves. Mas o oficial demonstrou que é corriqueiro no país as avarias em aviões como resultados de choques com urubus, pombos e diversos outros tipos de pássaros. Ainda de acordo com ele, o principal risco aviário enfrentados pelos pilotos brasileiros está junto aos aeroportos da cidades, devido à proximidade de aterros sanitários e lixões, que atraem, principalmente, urubus para as principais rotas de pousos e decolagens.

Outra palestra interessante foi sobre o sistema de registro de voz e dados nas diversas aeronaves, as famosas caixas-pretas. Um oficial especialista da Aeronáutica, explicou aos magistrados e operadores do direito que o som ambiente das cabinas de comando e do sistema de áudio são gravados pelo "Gravador de Voz" e os dados de performance como velocidade, aceleração, altitude e ajustes de potência, entre tantos outros, é gravado em outro equipamento conhecido como "Gravador de Dados".

O militar disse também que a Convenção de Chicago, um tratado internacional do qual o Brasil é signatário e que trata de normas aeronáuticas, não permite que os dados das caixas-pretas degravados e analisados sejam utilizados para outra função, a não ser para prevenção de novos acidentes. O especialista disse também que o Poder Judiciário pode ter acesso a qualquer dado, no entanto, o ideal é que os magistrados e os promotores se atenham aos registros brutos dos dados.

Para o juiz-auditor Arizona Saporiti, da Auditoria Militar de Salvador, a jornada de palestras do curso tem sido muito importante, principalmente por trazer ao magistrado esse outro lado dos especialistas. Ainda segundo o juiz, quanto mais informações chegarem aos dos juízes, mais firme e consistente serão as suas decisões. Ainda de de acordo com Saporiti, a Justiça Militar está um passo à frente dos outros ramos da justiça brasileira, no tocante aos julgamento de casos relacionados a acidentes aéreos, justamente porque os magistrados compreenderam a finalidade dos dados do Sistema de Prevenção e Investigação de Acidentes Aéreos. “Temos ciência de que os relatórios do SIPAER não são inquéritos e o seu uso sem uma cuidado especial pode vir a trazer sérios prejuízos e quebra de confiança junto às fontes de informações do sistema, que são essenciais”, disse.

A jornada do curso “O Papel do Poder Judiciário na Segurança de Voo” nas dependências do CENIPA terminou com uma visita ao laboratórios de destroços, onde os participantes puderam ver os restos da algumas aeronaves acidentadas. Dentre eles, o painel e a caixa-preta da aeronave do Boeing 737-800, Voo Gol 1907, acidentada em 2006. A Aeronave voltava de Manaus, em direção a Brasília, quando foi tocada pelo Embraer Legacy 600, que seguia para os Estados Unidos. O avião caiu na região norte de Mato Grosso.

 

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